sexta-feira, 30 de maio de 2014

A Geometria do Amor


Câncer, doença, dor, morte, perda, saudade, tristeza. Palavras que exprimem sentimentos e significados que se intercambiam, tecendo uma fina e inescapável trama que invade vidas e deixa marcas indeléveis.

É óbvio que tudo gira em torno de quem é acometido pela doença, mas nem sempre ele pode ou quer contar a sua história. Há psicólogos que lidam com pacientes oncológicos que propõem a escrita como exercício terapêutico. Conheci uma assim. A paciente, que, na verdade, era um tanto ou quanto impaciente, se rebelava, mas como gostava de escrever, botava as ideias no papel, e até planejava organizá-las em um livro. Infelizmente não teve a chance de fazê-lo. Há casos em que a pessoa leva a ideia a cabo, como o Dr. David Servan-Schreiber, em seu maravilhoso livro ‘Podemos dizer adeus mais de uma vez’ (Editora Objetiva). Muita gente hoje usa as redes sociais. Alguns acham que essa é uma atitude corajosa, outros se ressentem. Recentemente houve um debate que chegou ao New York Times porque uma mulher divulgou sua doença nas redes sociais e uma outra a criticou porque achava, basicamente, que aguentar calado era a atitude correta. Como os críticos eram jornalistas, o quiproquó virou um tsunami. Eu penso que falar é bom.

A doença tem um lado vergonhoso, embaraçoso, porque a mídia vende saúde. E também porque constrange. Quando alguém está saudável, não sabe como lidar com quem não está. Isso me leva a outro livro, ‘O clube do livro do fim da vida’, de Will Schwalbe, que é basicamente um diálogo entre ele e sua mãe, ao longo da quimioterapia a que ela se submeteu, entre discussões sobre os livros que liam. Nesse ínterim, ela sugeriu que ele criasse um blog para manter todas as pessoas de seu conhecimento informadas sobre seu estado, mas embora falasse em seu nome, era a mãe que ditava o tom e o conteúdo do que era postado. Durante todo o tempo da doença, ela procurava nunca se queixar, e continuava lutando por suas causas, especialmente a construção de uma biblioteca no Afeganistão, a se preocupar com a família, a ler os livros que combinava de discutir com o filho.

O outro lado da moeda é tudo e todos os outros. Eles, nós só existimos para, de alguma forma, dar algum apoio àquele ser amado.

Ler ‘A Geometria do Amor’, do meu amigo Luís Quintino, teve uma repercussão imensa em mim, por várias razões. Primeiro, por me apresentar pessoas admiráveis, como seu filho e sua esposa, e todos aqueles que os acompanharam nessa jornada de amor. Também, por aprofundar discussões filosóficas importantes sobre tudo que vale refletir, vida, morte, amor, amizade, respeito, ética, sensibilidade.

Luís Quintino afirmou que tentou falar por “todos quantos não podiam fazê-lo”, que tentou “traduzir neste livro a solidão do homem perante a morte, procurando, mesmo assim, reafirmar que a procura da felicidade continua a ser uma de suas maiores conquistas”. Mais uma palavra e mais um sentimento intrinsecamente ligados à trama antes mencionada que não citei, sabe-se lá porque, talvez na ilusão de que estamos tão concentrados na pessoa que amamos, que evitamos pensar no fato de que ela é, em última instância, a única doente, e a única que enfrentará, sozinha, a maior de todas as batalhas. Queremos esquecer, quem sabe, que mesmo rodeados de gente, em algum canto de nossas mentes, estamos sozinhos, e quando aquela pessoa que guarda um pedaço de nós, que nos compreende como poucos ou como ninguém, nos deixa, algo se perde.

O autor dá pistas para a escolha do título do livro, que pode parecer, à primeira vista, contraditório. A geometria remete aos traços do rosto do filho ou às palavras metodicamente selecionadas para expressar o que lhe vai à mente, mas ele não se vale dos números para entender ou medir o que se passa. Tenta entender, lê inúmeros livros sobre o assunto, e com isso vai dando sugestões notáveis, como no ‘Clube do Livro’ já mencionado, ao mesmo tempo em que entremeia essas informações com insights personalíssimos, só possíveis porque ele, a esposa e o Luís construíram uma relação amorosa ímpar. A poesia, que, de alguma forma, o ajuda nesse percurso, tem sua precisão: a palavra certa é vital. Como disse alguém, Thomas Edison ou Einstein, o gênio é um por cento inspiração, e 99% transpiração. Não é por acaso que toda essa geometria amorosa que resulta inspire.

Engana-se quem acha que vai encontrar tragédia e dor hollywoodianas. O sofrimento descrito é real, decorrente da história de uma doença que atinge um jovem de menos de 20 anos, filho único, e o choque que isso, naturalmente, causa em seus pais, família e amigos. Daí em diante, tudo que se relata é, literalmente, exemplar. O jovem Luís, em vez de ceder à doença, como muitos o fazem (eu, por exemplo, me confesso uma péssima paciente, e o admiro imensamente), assumiu uma postura corajosa. Diria que a sua foi uma jornada do herói, de resistência, força, coragem, dedicação, fé (à sua maneira), proteção aos desfavorecidos (como voluntário), criatividade e conquista. Penso que nos anos que lhe couberam, fez mais do que muitos de nós fazemos em toda uma vida.

Luís Quintino afirma que o Luís tinha a noção exata do inacabado. Só posso imaginar o que é ter uma expectativa de vida encurtada, limitações severas... Mas para quem encarou a doença com uma bravura rara, me parece que a compreensão do inacabado é a mesma que toma conta daqueles que sabem que não existem certezas.

Há uma passagem em que o autor menciona que o filho diz, “sofrerei na pele por todos e mais alguns porque estou nessa disposição, na disposição de ver todos na sua maior felicidade”. Não tenho como saber o que se passava em sua cabeça, mas ao ler isso, me lembrei de um livro da monja budista Pema Chödrön, quando explica a prática ‘tonglen’. Trata-se de um método para se conectar com o sofrimento – o nosso e o de todos a nossa volta, aonde quer que vamos, que começa exatamente pela prática de se tomar a si o sofrimento de uma pessoa que se sabe estar sofrendo e se deseja ajudar. Quando li sobre a prática, confesso que achei muito difícil. Como absorver o sofrimento dos outros, voluntariamente, ainda que seja um exercício mental (o sofrimento mental é real!)? Não surpreende que tenha me detido nessa passagem. A meu ver, somente uma pessoa com avançado entendimento é capaz de pensar assim.

Luís Quintino afirma que desde o início da doença do filho eles foram privilegiados com um novo nível de consciência. Os reveses da vida têm essa capacidade, mas só para algumas pessoas. Alguns reagem a um trauma com resiliência, outros com depressão. Leio ‘A Geometria do Amor’, testemunho a luta heroica e sem pieguices ou complacência, como está dito, e me assombro. Como isso é possível? Como é possível ser o espectador imparcial que quer o escritor? Pois se uma gripe nos põe o corpo abatido e a vontade de nos enfiarmos sob as cobertas. E os pais? O coração que aperta quando os filhos vão aqui ou acolá e não dão notícia, como assistir imparcialmente ao seu sofrimento?

Quantas vezes vocês emitiram seus gritos mudos, e choraram as lágrimas que ninguém viu, para não desmoronar, não fazer ninguém mais sofrer, a não ser vocês mesmos? Sim, concordo com o Luís Quintino, apesar da perda avassaladora, vocês viveram um grande, um imenso amor.

Levei algum tempo para ler esse livro, devido às emoções que despertou, e mais algum tempo para escrever sobre ele. Não é fácil entender (e aceitar) as perdas. Luís Quintino diz que uma forma de lidar com a saudade é via poesia. Eu me refugio teimosamente na prosa, mas só para ser contraditória, e em homenagem ao autor, recorro a um poeta:

“O que fazer?
Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Mesmo quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para não

Será que é tempo
Que lhe falta pra perceber?
Será que temos esse tempo
Pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara”
[Lenine, Paciência]


Pois o tempo, embora não traga esquecimento, traz uma certa calma. E como o próprio autor citou, “o amor não tem tempo, e dura no que amaste”. (Antônio Franco Alexandre, Poemas, Lisboa)

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